quinta-feira, 15 de março de 2018

Liberte-se. Entregue-se.



De acordo com a física, ninguém nem nenhum corpo tem força. Um corpo tem (ou não) a capacidade de aplicar uma força em outro. A força, portanto, não existe em lugar algum. Ela só pode surgir entre dois ou mais corpos, e apenas enquanto um interfere sobre o outro.

O reflexo em um espelho é a afirmação da existência do ser. Mas o ser, assim como a força, não é. Ele apenas está. É um instrumento de transição, tão mutável quanto o ar, a água. E é um evento que só acontece na medida em que interfere, que causa transformação no meio externo.

Por mais paradoxal que possa parecer, um ser que tem a sua existência afirmada por um espelho, portanto, não existe. Não existe pois a existência não se da em um lugar físico, como um corpo. Pois não é algo material, sólido. Assim como a força, na definição da física, a existência apenas se consolida no momento em que há relação. E como a força, deixa de existir quando não há mais contato, direto ou indireto.

Quebrar o espelho, pois, trata-se de negar a própria existência como identidade definida, como personalidade singular. Trata-se de recusar a própria materialidade, ilusão que nos faz acreditar que podemos criar. Porque a criação é algo que surge a partir de uma fonte única. E a fonte única não existe. Porque o ser por sí só não existe, assim como a força. Tudo o que podemos fazer, o que é muita coisa, é transformar. Transformar porque, recusando a própria materialidade, confirmada pelo espelho, passamos a interferir no outro. E é interferindo no outro que passamos não a criar, mas a transformar, fazendo surgir o novo.

O que gostamos de chamar de criação nada mais é do que a capacidade de afetar e de ser afetado - o que não pode ser separado, acontece simultaneamente - com uma intensidade e objetividade tal que permita que dessa relação surjam novas maneiras de afetar, o que muda a relação, o que desenvolve a relação, e assim estamos vivos.

Negar o próprio ego, no sentido de consciência da existência, de ser real, transforma o corpo em um processador de estímulos. Nada está nele. Nada sai dele ou chega a ele. Tudo passa por ele, transformando-o. Negar o próprio ego é de fato existir. Existir fora.

O ego não está em cada um. Está entre todos.

Um comentário:

  1. Adorei, encarei como uma resposta, ou continuação do que eu falei, mas que eu não pensei, sabe? É muito bom quando a gente consegue dialogar literalmente. Sinto falta disso. Gosto de ver meu texto no seu e o seu no meu. Quem sabe um dia isso não vira história?

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