terça-feira, 17 de abril de 2018

To Endure(ça)

• Suportar
• Resistir
• Perdurar
• Enfrentar

"To endure" não é como suportar uma dor de dente, passivamente. Não é como enfrentar uma maratona. É mais que isso. É a atitude de suportar de forma ativa, não passiva. É a atitude de enfrentar mas com uma estrutura sólida, não destrambelhadamente.

"To endure" é como remar contra a correnteza. Ao mesmo tempo que é ação afirmativa, com um objetivo, com determinação, com persistência, com força e até mesmo com certa agressividade, é também "ser sólido", aguentar a dor, o cansaço, o desânimo, fincar os pés no fundo do rio e dizer "daqui eu não saio, daqui ninguém me tira".

"To endure" é afirmar-se no momento presente e não arredar o pé, não voltar atrás exceto pra tomar impulso e, ao mesmo tempo, seguir o curso que tem em mente, lutar pelos objetivos, sonhos, necessidades. É segurar o tranco e dar o tranco simultaneamente, é ser consistente, inabalável embora atingível.

"To endure" tem um significado que não tem um correspondente exato em português. "To endure" é ir com garra pra frente com uma sustentação sólida atrás.

"To endure" é o que a vida pede, é o que a vida é.

sexta-feira, 16 de março de 2018

Trinta, ânus.

Esse negócio de fazer 30 anos da uma sensação de sobrevivência. Parece que, agora, a gente realmente comprou a vida e não tem mais volta. Não é mais test drive, não é mais amostra grátis e não é mais tutorial. Agora fodeu e fodeu com força.

Da mesma forma, também da uma sensação de que a vida acabou. Sim, porque se você parar pra pensar, muita gente viveu menos que isso ou fez valer o seu legado antes de chegar a essa idade. Da uma sensação de que agora foda-se, eu já vivi a minha vida toda e o que vier agora é lucro. Fora que, a essa altura, não parece que tenha muito mais que acontecer. Os lugares mudam, as pessoas mudam, mas a porra da rotina é uma constante. A gente corre atrás do próprio rabo em busca de respeito, em busca de uma vida boa, em busca de uma mente tranquila e hora a gente consegue hora a vida te da um caldo de engolir areia pela boca e pelo cu.

Por mais contráditorias que sejam, essas duas conclusões juntas fazem uma confusão interessante na cabeça da gente. Não vou dizer boa, porque, afinal, sei lá eu que porra que eu faço agora com a minha vida. Mas não é como se algum dia eu tivesse sabido, então tá tudo certo.

Da vontade de jogar fora velhas vontades, hábitos, manias e passar a ser o criador ativo dessa pós vida que se segue. Ao mesmo tempo que da um saco cheio de ter que continuar nessa caralha, dia após dia pensando, planejanto, repensando, errando e, eventualmente, acertando. Mas, talvez a sensação mais forte seja que, se eu cheguei até aqui, não é qualquer peidinho que vai me matar. Embora talvez mate. E enquanto quero que mate, também sinto-me mais livre ao saber que, possivelmente, não matará. E, afinal, se matar, já foram 30, não é mesmo?

O amanhã espera, as responsabilidades cobram, implacáveis como uma segunda feira. Não só não tarda como vem. E a gente tenta alongar a noite pra aumentar a vida vivida, e no dia seguinte se chinga quando toca o despertador por não ter ido dormir mais cedo pra, no dia seguinte, estar bem e acordado durante o tempo em que a nossa vida não nos pertence, em que lutamos pra agradar, para servir às expectativas, para não atrasar, para não fazer muita cagada, para tentar roubar alguns minutos do patrão para viver um pouquinho mais da própria vida que de dia congela e espera chegar a noite pra voltar a ser.

Será que vai ser sempre um esforço para tentar converter as horas do dia no máximo de vida vivida possível. Em vida minha? Mas que foda pensar nisso. Que coisa horrível perceber que estamos aqui e pouco importa, porque o tempo em que de fato estamos aqui é o menor possível. É talvez 3, 4 ou no máximo 5 horas por dia, por 24 horas. Puta que pariu!

Bom, são esses os 30. É a coragem para enfim se apropriar da vida mas o cagaço de perder o emprego e não ter do que viver. É a vontade de tomar a própria vida pelas mãos mas saber que, de vida mesmo, pouco tempo sobra. É a realidade bruta e escancarada tirando a vontade, que, nem por isso, é tirada. É contradição mesmo, nua e crua, do jeitinho que a vida é.

minúsculo com M de Maiúsculo

Parece que o caminho que a vida toma é pegar todo o M de Maiúsculo e comprimir em minúsculo para que caiba mais, mantenha-se o padrão – que seria afetado ao aceitar um gigantesco e destoante M no lugar que poderia ser eficientemente ocupado por um m - e não incomode.

valor com V de Valor


As pessoas se tornam interessantes na medida em que se mostram complexas.
               
Não complicadas. Complexas.

Mas a sobrevivência em sociedade exige das pessoas que não se demonstrem complexas no dia a dia, mas que ponham em primeiro plano sua parte rasa, que por sua vez é sempre mais leve, sociável, prática e produtiva.

Por isso me interessam teatro, filosofia, psicologia e álcool. Nestes lugares onde não se produz valor é que acontecem as coisas realmente valiosas.

adulto com A de Adulto


                Eu olhava os adultos de baixo pra cima e aquilo me era incompreensível. Eram pessoas que mandavam nos outros, controlavam as próprias vidas e mandavam em si. Eles sabiam o que fazer a cada hora, em toda situação e como fazer e o que usar. Tinham sempre as respostas, conheciam todas as palavras, entendiam todas as piadas, sabiam usar e controlar todas as coisas da forma correta. Exceto, talvez, o controle remoto, que naquele tempo era o mais próximo do nosso smart phone. Suas coisas eram arrumadas, eles tinham o que precisavam e, se não tinham, sabiam sempre onde encontrar e compravam nem antes nem depois, mas no momento exato em que o artigo se fazia necessário. Eles, os adultos, eram a base sólida, o alicerce, o casco do navio, o chão, a certeza.

                Enquanto eu, criança, adolescente, jovem, adultescente, adulto, era sempre uma folha ao vento. Parecia que não chegava nunca aquela mutação na qual um casulo transformaria o meu adulto no adulto deles. Pelo contrário, parecia é que a mutação do adulto deles estava sendo revertida, transformando-os pouco a pouco em toda a incerteza, inconstância e insegurança do meu adulto falho, que chegou à idade para tal mas que, aparentemente, não desenvolveu nem um milésimo dos requisitos necessários.

                O adulto morreu. Não havia mais tal figura. Existiam pessoas e anos. Existem pessoas e anos. E os anos passam pelas pessoas, que em vão os tentam acompanhar. As pessoas ficamos presos a um único eu que é outro a cada segundo e, precisamente por isso, nunca mudam. São um constante estado de transição desordenada e caótica que, por maior que seja o esforço e o talento, no máximo tangenciam aleatoriamente e por todos os lados o rumo que procuramos dar aos nossos dias.

                O programa do Jô se mostrou finito, a Derci mortal, os Estados Unidos atingíveis, a Europa abalável, a democracia contestável e a moral precificável, enquanto a adultez por sua vez seguia vertiginosamente na contramão, mostrando-se talvez a única de fato inalcançável.

                Caíram portos seguros, referências e ídolos, transformando o mundo todo em um enorme buraco negro assustadoramente imbatível e inescapável dentro do qual deveríamos triunfar ou morrer tentando. Vimo-nos obrigados a interpretar segurança, exalar certeza, engolir conhecimento, emular felicidade, incorporar tabus, castigar fraqueza, reprimir sentimentos e sepultar utopias de forma que todos à nossa volta não vejam outra coisa em nós senão adultos inteiramente metamorfoseados com êxito.

                Todos, exceto nós mesmos.

quinta-feira, 15 de março de 2018

Uma porção de Revolução à milanesa, por gentileza...

- Uma falta de vergonha na cara! nem bem cheguei e a polícia já havia prendido vários manifestantes e dado de cacetete em outra boa parte. corri pra ajudar o que estava mais perto de mim, no chão, apanhando feito um cachorro vira lata que foi fuçar onde não devia. quando pensei em levantar o braço eu já estava no chão, apanhando em solidariedade ao meu colega.

- Corta! Muito bom, por hoje chega. Que tal uns sushis pra fechar a noite?

- Fechado, mas hoje é por minha conta.

Padrão

, é tudo um padrão. uma enterna espiral. Todos sabem tudo, de fato. basta saber onde procurar.

Religião

Minha fé está em tudo aquilo que pode me matar se me atingir na cabeça a 120Km/h

Capriche na embalagem

e qualquer idéia se torna referência. q-u-a-l-q-u-e-r.
Mania de querer ser o que os outros querem ou precisam. Hora de voltar ao eixo, antes que ele se perca mais uma vez.

Health Love Work Friendship Money

"Terra! Fogo! Vento! Água! Coração!... Vai Planeta!"

...é, o título me lembrou isso por algum motivo. Vai entender...
A primeira coisa a entender é que você não deve absolutamente nada a ninguém, nem mesmo a você. Você não tem a obrigação de ser feliz. Você não tem a obrigação de produzir nada. Você não tem a obrigação de satisfazer às necessidades emocionais de outra pessoa. Você não tem a obrigação de explicar o motivo, a base, o raciocínio lógico que o levou a fazer ou deixar de fazer alguma coisa. Você tem completa autonomia para usar e abusar da sua intuição, que é uma das poucas coisas que nos restou de natural. Você não tem a obrigação de manter o padrão econômico da média da sua família ou de elevá-lo. Você não tem a obrigação de ter uma família ou de continuar na sua. Você não tem a obrigação de agradecer a deus por ter saúde, por ter família, por ter comida. Você não tem, sequer, a obrigação de viver. E você não tem a obrigação de saber os motivos que te levam a querer ou não alguma coisa e a acreditar ou não em alguma coisa.

A segunda coisa a entender é que ninguém é obrigado a entender nada. É uma prepotência sem tamanho achar que podemos nos entender, entender aos outros e entender o sentido da coisa toda. Ninguém em sã consciência deveria obrigar ou sentir-se obrigado a saber de nada. Você tem total liberdade pra passar a vida toda sem saber o que quer ser quando crescer. E ninguém tem o direito de insinuar que você é menos por isso. Até tem, mas ela merece um soco na cara muito bem encaixado em retribuição.

A terceira coisa a entender é que não há nem a primeira, nem a segunda, nem nenhuma coisa a entender. Todas elas juntas formam um grande e singular vômito de uma pequena parte de todas as coisas indigestas que socam na nossa goela e que não tem nenhum compromisso com a realidade. São apenas tentativas de lidar com o fato de que a realidade é uma merda, e que o que uns chamam de pessimismo crônico outros chamam, simplesmente, de "não engolir essa mania cor de rosa de pensamento positivo que gera felicidade", que é mais chato que fanático religioso pregando sobre a plenitude do ser. Não é possível, algum dia vão ter que perceber o tamanho da doença que é essa busca pela felicidade com fórmulas lógicas, planos, metas. Ninguém vê que isso é religião?

A quarta coisa a entender é que religião funciona. Mas pra quem acredita. E que, infelizmente, acreditar não é uma opção. Se você vê que aquilo não faz sentido, pode tentar acreditar até a morte. Não vai rolar.

A quinta coisa a entender é que não há nenhuma - absolutamente nenhuma - versão de Caruso melhor do que a interpretada por Lucio Dalla.

A sexta coisa a entender é que, muitas vezes, um cachimbo é apenas um cachimbo. E que escrever direto num blog para ficar exposto pode ser apenas uma forma de dar um frio na barriga, ou um fetiche de exibicionismo, ou qualquer outra coisa tão simples e imbecil quanto. E muitas vezes não é nem uma nem outra, e nem nenhuma, só é assim por que foi assim que aconteceu. Acaso.

A sétima coisa a entender é que tem textos em que você encontra a problemática toda na primeira linha. Do contrário não haveria tantas explicações nas linhas que a seguiram - caso ela não dissesse que ninguém deve nada a ninguém.

A oitava coisa é que manter uma linha de pensamento sem tender a falar logo do todo da forma mais superficial possível não é exatamente a especialidade da geração y.

E a nona coisa a entender é que um texto no meio de vários de um blog que, basicamente, pontua momentos da vida de alguém, não precisa e nem deve ter fim. A não ser que ele morra. Mas ai não vai ter como ele escrever o fim.

Enfim[...]

Tela branca


-->
Se eu ficar é porque eu quero
Se eu sair é porque gosto
Se eu pedir é porque preciso
Ou porque desejo

Se eu me atrasar é por receio
Se eu não chegar é por ter medo
Se eu fugir é por pavor
Por pavor de fazer parte

Fazer parte de que?
Às vezes nem sequer sabemos
Muitas são as coisas boas
Mas coisas boas a que preço?

Se eu prometo é porque minto
Se eu combino é porque sei que vou faltar
Se eu dou ideia é porque sei que não vou fazer
Se eu digo o que sinto logo sei que não vou mais sentir

Se, contudo, vou e faço
Faço porque quero
Se procuro é porque quero
Se convido é porque quero

E o que quero agora é parar de sentir
Não uma coisa ou outra
Não quero sentir coisa boa nem ruim
Só não quero sentir...

Nada

Não por raiva
Não por qualquer motivo
Só por cansar da sensibilidade
Por não querer gostar nem desgostar de nada nem ninguém

É como um quadro de cores vivas
Ele pode ser bonito ou pode ser feio
Mas, depois de muito olhar para qualquer que seja
Tudo o que quero é apreciar uma parede branca

Ficar num vácuo emocional
Criar um estado de não sinto nada
Um estado de não penso nada
Estar em paz

E já dizia o velho ditado

Quem muito fala... fica rouco.

Estado de Êxtase

Um objeto muito fino e frio toca a superfície da pele

Devagar, desce pela lateral do pescoço
Contorna os ombros e desce pelas costas
riscando toda a espinha...
Contorna o quadril
e desce pela perna em espiral

Passa por tras dos joelhos
contorna a panturrilha
Risca a lateral dos pés
e aos poucos vai desenhando por todo o corpo

Faz o caminho de volta e começa novamente...

Aquela sensação continua percorrendo todo o corpo
suave e pontual.

Logo, a ponta fria de mais um objeto começa a percorrer o corpo
por um caminho diferente
num ritmo diferente...

E então um terceiro,
e um quarto ponto...

A vontade é de que apareçam mais desses objetos
Cada traçado causa prazer
Mas, mais do que isso,
causa o desejo de que aquela sensação pontual se multiplique,
que se espalhe por todo o corpo,
e de que se intensifique...

Mais e mais pontos começam a acariciar a pele
Mas muito lentamente
e com um toque tão leve que quase não se sente

Simultâneo ao prazer surge a ansiedade e a angústia
de ter apenas uma série de tímidas carícias

Agora os objetos obedecem.

Toquem com mais peso
Acariciem com toda sua superfície
Envolva até que já não reste nenhum ponto de contado vazio
Distribua esta deliciosa sensação por todo o meu corpo
e eleve ao máximo sua intensidade
Mergulhe-me em estado de êxtase...



Incontáveis lâminas perfuram a carne.

Sobre o Paradoxo do Comediante

E ao fim do espetáculo, em meio a risos e gargalhadas do público, o artista se vai, infeliz. É que ele tem olhos para ver e sabe que tudo que os fez rir há pouco é parte da mais triste realidade. Por isso um comediante não poderia ser outra coisa se não um comediante: sua maior alegria é poder rir os risos da platéia e esquecer por breves momentos que ele pode ver, é poder sentir aquele riso bobo e tornar-se mais um entre os cegos; é poder fechar os olhos por alguns instantes e sentir, enfim, que ele também faz parte da humanidade.
Quanto mais preenchido mais vazio...

Mestres de festim

Passei da fase em que baixava a cabeça. Já neguei verdades de quem jamais imaginei contrapor. E algumas vezes já estive certo. Já tive aula com mestres que jamais imagino superar. Não nas especificidades às quais estes se propõem a estudar. Já conheci gênios incapazes de escrever um texto. Já conheci magníficos hipócritas, incapazes de fazer uma palavra do que dizem. Ainda assim, magníficos. O que fica de tudo isso é que tudo o que aprendi, para o honesto ou para o vil, me foi passado por pessoas que nada intencionavam passar. Por gênios que imaginavam nada saber. Por mestres que queriam um dia, talvez, saber algo sobre alguma coisa. As vagas de mestres na minha vida já estão ocupadas. E vão aos poucos sendo ocupadas por um ou outro ignorante de sua própria grandeza. Não há possibilidade alguma, pois, de me ver novamente subordinado a algum especialista acadêmico, de me ver obrigado a um mestre conhecedor da natureza humana por meio de livros. Pouco me toca o conhecimento adquirido pela simulação, o conhecimento de festim. E pouco me importa o "gênio" de quatro anos. Formado, diplomado. Nada menos do que uma longa vivência forma um mestre. Só há um ignorante que tem o direito de obscurecer meus pensamentos. E este sou eu. Fora isso não quero verdades de ninguém menos que um humilde.

Liberte-se. Entregue-se.



De acordo com a física, ninguém nem nenhum corpo tem força. Um corpo tem (ou não) a capacidade de aplicar uma força em outro. A força, portanto, não existe em lugar algum. Ela só pode surgir entre dois ou mais corpos, e apenas enquanto um interfere sobre o outro.

O reflexo em um espelho é a afirmação da existência do ser. Mas o ser, assim como a força, não é. Ele apenas está. É um instrumento de transição, tão mutável quanto o ar, a água. E é um evento que só acontece na medida em que interfere, que causa transformação no meio externo.

Por mais paradoxal que possa parecer, um ser que tem a sua existência afirmada por um espelho, portanto, não existe. Não existe pois a existência não se da em um lugar físico, como um corpo. Pois não é algo material, sólido. Assim como a força, na definição da física, a existência apenas se consolida no momento em que há relação. E como a força, deixa de existir quando não há mais contato, direto ou indireto.

Quebrar o espelho, pois, trata-se de negar a própria existência como identidade definida, como personalidade singular. Trata-se de recusar a própria materialidade, ilusão que nos faz acreditar que podemos criar. Porque a criação é algo que surge a partir de uma fonte única. E a fonte única não existe. Porque o ser por sí só não existe, assim como a força. Tudo o que podemos fazer, o que é muita coisa, é transformar. Transformar porque, recusando a própria materialidade, confirmada pelo espelho, passamos a interferir no outro. E é interferindo no outro que passamos não a criar, mas a transformar, fazendo surgir o novo.

O que gostamos de chamar de criação nada mais é do que a capacidade de afetar e de ser afetado - o que não pode ser separado, acontece simultaneamente - com uma intensidade e objetividade tal que permita que dessa relação surjam novas maneiras de afetar, o que muda a relação, o que desenvolve a relação, e assim estamos vivos.

Negar o próprio ego, no sentido de consciência da existência, de ser real, transforma o corpo em um processador de estímulos. Nada está nele. Nada sai dele ou chega a ele. Tudo passa por ele, transformando-o. Negar o próprio ego é de fato existir. Existir fora.

O ego não está em cada um. Está entre todos.

Luz

Hoje eu liguei minha tv. Sintonizei o rádio numa estação pop. Acordei em um horário de gente normal. Arrumei meu apartamento. Atendi o telefone da primeira vez que ele tocou. Abri as janelas para aproveitar os ares da manhã.
Tudo parece sólido. A realidade parece presente. Que engano. Realidade? Não acredito nisso, não. Mas agora ela me parece tão real. Quero fazer tudo igual. Nada diferente. Nada ao contrário do que uma pessoa considerada normal faria. Não quero ver algo diferente. Não quero ouvir algo diferente. Não quero fazer algo diferente. Acho que só isso já me traz tudo diferente. Porque se nunca quero fazer o que é igual e agora estou fazendo, então pra mim é diferente.
Acho que são os ares do dia. Tudo fica mais real. Não há intervalos de sombra que privilegiem a imaginação. Tudo está dado. Como num palco realista. Temos a impressão de que nada é relativo. Sabemos tudo. Vemos tudo. Ou ao menos pensamos que sim, por confiarmos de mais em nossos precários cinco sentidos.
Hoje? Sinto a necessidade do dia. Sinto a necessidade de ter certeza. Não me sinto disposto a ser flexível. Acho que finalmente entendi a função do dia para os notívagos: dar um descanso para a criatividade.

Ideal




Uma caixa fechada. Por fora escrito "ABRA".
A decisão é sua. Você pode abrir. Ou não.

Se ela ficar fechada você acaba imaginando uma série de possibilidades. Cada uma delas transforma o pensamento, traz sensações, emoções, altera o batimento, provoca transformação dentro e fora. Tudo isso preenche, imaginação e alma.

Mas você resolve abrir...

Não há nada. Está vazia. Tudo o que se vê é, no fundo da caixa, uma palavra escrita: "FECHE".

Assim é a vida.

O ofício dos amantes

Não é pelo prestígio. Não é pela fama. Não é pelo sucesso. Não é pela perfeição. Não é pra mostrar. Não é por mim.

É pelas pessoas. É por causa da paixão pelas pessoas que nasce a paixão por uma vivência.

E está ai o maior estímulo que se pode achar: o outro.

Teatro é só conseqüência. Algo que se faz junto. A verdadeira paixão acontece no subtexto.

Existe erro maior do que buscar estímulo em pessoas que não o estimulam?

O Gringo que Enxugava as Mãos



Duas e dez da manhã. O asfalto está molhado pela chuva que parou há pouco. Faz frio. São Paulo dorme.

Apresso o passo para sair logo da rua deserta. Depois da esquina me vejo em frente ao meu destino, um café 24h. Tiro o casaco, faço meu pedido no balcão e subo os degraus. Escolho para me sentar um sofá num canto oposto à escada, no fundo do salão, de onde vejo todo o movimento, das escadas ao corredor do toilette. Abro meu livro e começo a fazer anotações.

- Seu café, senhor.

Como de costume, estendo minha leitura noite a fora. O lugar se esvazia ao longo da próxima hora, restando apenas dois universitários debruçados sobre alguns livros grossos, falando baixo entre sí na língua dos números. De tempos em tempos a garçonete sobe trazendo pedidos e levando bandejas.

Lá pelo terceiro ou quarto café a chuva volta a cair, o que torna ainda mais envolvente aquele ambiente quente e aconchegante. Quase que simultaneamente à chuva ouço risos altos de um grupo de homens vindo do andar de baixo. O som vai aumentando e percebo que falam em inglês. Pouco tempo depois, quatro homens jovens e de pele muito clara emergem do vão das escadas momentos antes da garçonete, que traz mais dois cafés aos estudantes da outra mesa.

Os gringos se demoram em volta de uma mesa bem em frente ao corredor dos toilettes, bloqueando parcialmente minha visão. Eles não parecem ter dado muita atenção à minha figura monótona no outro canto, com um livro na mão.

- Ai meu Deus! Me desculpe!

- Não tem problema, não caiu em mim - disse um dos estudantes vendo seu café escorrendo da mesa para o sofá em que estava sentado um segundo atrás. Reflexos rápidos.

Ele trocou de lugar enquanto a garçonete colocava um pano no sofá molhado. Dois gringos haviam ido ao toilette. Um já voltara ao grupo, ainda em pé perto da mesa, enquanto o outro lavava as mãos na pia que se projetava para dentro de uma das paredes do corredor.

A garçonete se juntou ao último para lavar o pano sujo de café. Os outros três continuavam rindo em uma conversa mais baixa, e estranhamente pareciam cada vez mais próximos à entrada do corredor. Pouco se via - e ouvia - da garçonete e do gringo que agora enxugava as mãos. Os três aumentaram um pouco o som da conversa, não pareciam mais notar a presença dos outros dois atrás deles. Por entre os três corpos, agora quase grudados, era possível vislumbrar movimentos bruscos e rápidos e algumas pausas, até que não era mais possível entender a que corpo cada membro pertencia. Tudo o que se ouvia era alguns risos e trechos de frases soltas em meio a um murmúrio incessante, nada que levantasse alguma suspeita em olhos desatentos, visto que os três mantinham a mesma conversa empolgante de antes. Estavam todos tão próximos que mal se distinguia quem emitia cada som.

Passaram-se cerca de cinco minutos quando o gringo que enxugava as mãos quebrou a unidade espacial dos três colegas. Instantaneamente os risos aumentaram e a conversa acelerou enquanto os quatro dispersavam em grupo para o andar de baixo.

Os risos foram ficando distantes. Cessaram.

Os estudantes continuavam absortos em seus cálculos. Eu os invejava por isso. Não viam nada à sua volta quando distraídos com suas atividades.

A garçonete saiu do pequeno espaço onde a pia se projetava para dentro da parede do corredor, agora visível. Ela foi em direção à escada, rindo com uma expressão divertida e incrédula, onde encontrou os olhos de um outro funcionário - com uma expressão divertida, curiosa e com um leve traço de incredulidade também - cuja presença eu ignorava até o momento. Desceram cochichando.

Aqueles estudantes nunca vão saber da garçonete e do gringo que enxugava as mãos. Não viam nada à sua volta.

Vai Brasil!

Toda a rotina é de subito interrompida. Os meios de transporte de toda a cidade ficam superlotados. Os caminhos que as pessoas fazem de costume não são mais válidos, hoje nenhum fluxo humano é totalmente previsível. Os engarrafamentos se sustentam por pouco tempo devido aos fluxos variados.

...

Os pontos de ônibus se esvaziam. Os metrôs esvaziam. As ruas. Olho pela janela e não vejo de onde vem nenhum dos sons que ouço. Todos os grupos já estão concentrados em seus destinos.

Em alguns minutos todo um país vai parar para torcer pela publicidade, pela globalização, pela aculturação, pelo turismo sexual, pelo pão e pelo circo, pela concentração do capital nas chuteiras dos jogadores e nas pastas dos políticos e dos empresários.

Todos nós vamos apoiar o símbolo nacional de adesão à modernidade. São os nossos vanguardistas! Todos vamos gritar a cada gol, a cada milhão adicionado às chuteiras dos nossos iguais, a cada milhão a mais que morre de fome por conta disso.

E quando ganharmos mais um troféu vamos todos ao delírio. Viva o crescimento do turismo, da concentração do capital e do aumento do abismo entre iguais! Viva a "cultura" do futebol e do samba! Viva o fazer sem pensar! Viva a geração moldada para servir ao sistema e para sentir prazer com aquisições inúteis! Viva os teatros vazios! Viva o país de analfabetos funcionais! Viva o ideal de democracia que nos obriga a dar ouvidos a toda e qualquer asneira que nossos líderes inventam para despistar a revolta do povo! Viva a domesticação da revolta do povo!

A cidade me lembra um filme de zumbis.

Começa o jogo.

Mais um texto errado

Há os que falam mal e os que fazem mal.

Os que falam mal ou já fazem bem ou estão se bloqueando pois, ao falar mal, estão desqualificando aquilo que um dia terão que aprender a fazer. E certamente farão mal até que esteja bem treinado. Logo, desqualificam seu próprio futuro aprendizado.
Agora, se já fazem bem então estão se enganando. Só fazem menos pior pois nunca será perfeito. Que numero está mais próximo ao zero, o um ou o cem? Se considerarmos que existem infinitos números entre zero e cem e que também existem infinitos números entre zero e um então 1 = 100 em relação ao zero, apesar de o espaço entre eles também ser infinito... deu pra pegar a analogia né?

Portanto, não há quem faça bem. Há aquele que já errou mais e, por isso, quanto mais se aproxima do "cem" menos os "uns" percebem seus erros, que são mais perceptíveis para os que erram a mais tempo e mais aos que erram por menos tempo. Isso se é que se pode chamar de erro no lugar de realização inadequada a determinado objetivo.

E há os que fazem mal. Os que fazem mal são todos os que fazem. Então por que falar mal? Porque assim nos poupamos ao trabalho de cometer erros. E também de aprender com eles. E não aprendendo nos privamos de ser o infinito, seja ele mais próximo de um ou de cem, para nos tornarmos pontualmente o zero. Sem profundidade, sem diversidade, sem multiplicidade e sem sentido. Um zero que aponta em todas as direções sem nunca experimentar nenhuma.

Mas veja pelo lado bom. O zero é feliz. ;-)


Falando na lata:

Se você acha que sabe, não sabe de nada. Quanto menos você acha que sabe, mais você já deixou de não saber. Não estou falando nenhuma novidade. O que nos resta é passar a vida a brincar com nossos infinitos erros. Pois brincando com eles nos permitiremos errar mais. E errando mais, mais infinitos seremos.

Deixe as crianças brincarem.

Deixe as crianças brincarem.
Está nas crianças a imagem daquilo que somos.

Deixe as crianças brincarem. Permita que elas aprendam a gostar da vida. Permita que elas descubram, percebam, criem.

Deixe que elas brinquem e criem assim sua própria visão de mundo, não a que nós temos. Não induza a próxima geração a ser errada como nós. Não ensine que quebrar é errado. Não ensine que sujar é errado. Não ensine que não devemos fazer barulho.

Não ensine que errar é errado.

Não ensine. Saiba que a criança que brinca aprende muito mais do que o pouco que nós temos a passar.

Incentive. Permita que nossas crianças nos superem. Não tenha medo disso. Permita que nossas crianças não nos vejam como heróis, como sábios donos da verdade e velhos conhecedores da vida.

Brinque.

Não se deixe acreditar que a vida é séria. Não se deixe acreditar que você é importante. Não coloque esse peso nas suas costas.

Brinque, porque nós somos um dos poucos animais que tem essa necessidade. Aceite que nossa desimportante vida não deve ser vivida em vão.

Aceite suas obrigações. Você é obrigado a brincar, a não levar tudo tão a sério, a rir, a amar, a fazer nada com os amigos e a gastar dinheiro apenas com coisas desimportantes.

Status é muito importante. Estilo é muito importante. Poder é muito importante. Acumular dinheiro é importante. Segurança é importante. Não perca seu tempo com isso.

Jogue bola com seu filho. Beba, sim, mas faça-o acompanhado. Erre com vontade. Ria dos erros porque, assim que corrigi-lo, virão outros. Tenha por objetivo errar. Porque quanto mais erros cometemos, mais conhecimento temos para poder errar muito mais.

Não acredite que um homem sábio é aquele que sabe. Ele sabe tão pouco quanto qualquer outro. Mas tem consciência disso. E aprendeu a aceitar sua ignorância.

Ouça as crianças. Elas não tem a maturidade para dizer o que queremos ouvir. Elas ainda não aprenderam a ser cordiais. Elas não aprenderam a evitar conflitos. Elas ainda não desenvolveram a habilidade de contribuir com a perpetuação das convenções sociais, engessadas pela cultura do lugar onde crescemos. É delas que vamos ouvir o que realmente somos. Elas que vão nos mostrar o que nós escondemos de nós mesmos, por trás da moral e da lógica social na qual estamos imersos. Elas conseguem ver de fora o nosso comportamento estranho e paradoxal porque ainda não viveram tempo suficiente para ficarem totalmente imersas em nosso aquário normativo.

Tenha um animal de estimação. Muito tempo com humanos pode ser prejudicial. Ficar sozinho nem sempre resolve. Você é um ser humano.

Se nada disso servir para você, tudo bem. Viva a sua vida como quiser. Mas permita que o mundo mude. Deixe as crianças brincarem.